O dia das Bruxas é especial para mim por motivo de gratidão. Não gosto de rótulos, modinhas, autoproclamação de adjetivos. A meu ver, a palavra Mulher já resume tudo.
Compartilho com vocês a história, essa real, de o que, certamente, vocês chamariam de bruxa – bruxa mor, bruxa com poderes incríveis, e ainda por cima, linda. Tinha o “poder” de encantar, não pela beleza, mas pelo comportamento, força e fé. Sua magia estava muito presente no sorriso e nas palavras.
Então, vou contar: O ano era 1927 – nasceu uma menina numa família 50% pobre, 50% besta… é… era assim mesmo que se chamavam as pessoas metidas da época. Já começa que sua mãe, uma mulher mestiça se atreveu a se apaixonar por um filho de europeus. Assim, o preconceito já veio na origem. Pensa que ela incorporou? Not really! Até porque a jovem “mestiça” (mistura de holandeses com negros e índios, muito lindo isso) não era de bobeira. Uma leonina típica. O que queria e fosse justo, era uma sentença a favor. Seria feito.
Assim, sua mãe começou a namorar o filho de espanhóis, e quis fazer conforme rezava o figurino: apresentar o candidato a ser seu marido ao pai, pois sua mãe já não morava mais na Terra. Caramba…! O pai dessa leonina era, digamos assim…, um bruto! Quando viu o jovem magrinho, branco… é… essa era uma questão. Expulsou-o de casa imediatamente, chamando-o de “espanhol imundo”. Credo, que horror! Mas pensa você que a história parou por aí? Nada disso. Começou exatamente aqui.
Ela fugiu de casa – simples assim. E “casou espiritualmente” com o filho de espanhóis. Grana para festa, filhos e até comida não rolava. Assim sendo, eles foram morar na casa dos pais dele. E o preconceito continua, pois ela fugiu do preconceito do pai contra ele, mas deparou-se com o preconceito dos sogros contra ela. Ok. Ela segurou o tranco com tanta força e coragem que teve quatro filhos. Uma delas é a personagem de nossa história.
Infância – A Carbonera
O nome da menina era Esmeralda, alias, o mesmo nome da mãe – as pessoas adoravam fazer isso, só para confundir e dar trabalho aos psicólogos. Moravam em um bairro pobre da zona norte do Rio de Janeiro, e lá não tinha esse gás de rua ou de botijão (ih… desculpem lembrar desse problema atual). Eles cozinhavam com fogão à lenha, e alguém tinha que ir buscar madeira ou carvão para fazer comida. A Esmeralda 2, conhecida como Dininha, se voluntariava para ir fazer isso, pois rolava um trocado dado pelos avós ou tios – esses já tinham uma situação financeira melhorzinha.
Dininha, magrinha, com cabelos negros e encaracolados, alta para sua idade, saía e ia buscar carvão. Voltava cantando pela rua com a roupa toda suja do carvão, que levava displicentemente. Era criança e nessa época não ligava muito para a aparência. Assim, ficou apelidada de “A Carbonera”.
Adolescência da Carbonera
O Dia das Bruxas é o foco de nosso assunto, mas o assunto aqui é a maior “bruxaria” de todas. Vamos lá! O tempo passou, época de escola e seu pai não tinha um salário fixo, pois seu talento era para o comércio, a sinuca, um sambinha – que ele mesmo fazia, batucando nas mesas de bar onde tomava uma cervejinha gelada – e vendia de tudo um pouco, ora era peixe, ora era seda pura, e tinha fases que eram jóias belíssimas. Ele era muito agradável, conhecido de todos no bairro e os comerciantes o confiavam suas mercadorias para venda – era bom para os dois lados – ele vendia muito bem. Além disso, era um Curandeiro benzedor muito conhecido e bom naquilo que fazia como dom inato.
Em tudo o que fazemos, mesmo que não nos demos conta, tem consequência – 4 filhos é complicado de alimentar, mandar para a escola e nutrir. Assim sendo, desde cedo a filha mais velha aprendeu o ofício de costureira, o único filho homem fez concurso para os Correios (que era considerado um baita de um emprego), a filha mais nova, foi estudar inglês num curso muito famoso, o qual ela enrolava a língua e fazia pose de dama inglesa, e dizia: “estudo na Berlitz School” – disse que ela fazia pose, mas parecia mesmo com o lado europeu da família – tinha cabelos claros, pele muito branca e gosto refinado. Agradeço a ela meu amor pelo idioma que mais tarde veio a ser minha profissão.
Bem, e vocês devem estar pensando. “E a Carbonera?” Simples. Tratou de ir trabalhar para ajudar os pais – tinha outra opção? Foi trabalhar no consultório de um dentista no Centro da Cidade – eles moravam em Madureira. Pegava o bonde, e lá ia ela. Toda bem vestida, pois sua irmã mais velha fazia as roupas que ela inventava – comprava, com um pouquinho do salário que ficava em suas mãos, os melhores cortes de fazenda (nunca entendi chamarem pano de fazenda, mas isso é detalhe).
Conhecendo o Futuro – casamento, filhos e problemas
Ali mesmo no bonde ela conheceu um jovem estudante de direito que era o bonitão da parada. Assim, não demorou, ela, que havia estudado muito pouco, mas tinha inteligência privilegiada e vontade forte, fez um concurso público e passou. Não demorou muito e casaram, tendo três filhos. Ao casarem, ela fez questão de sair de Madureira, que era bastante longe do trabalho e mudou-se para um bairro da Zona Norte considerado como ponte para a classe média. Ela decidia e fazia.
Encurtando a história, o casal não tinha lá essa grana toda e, mesmo os dois trabalhando, tiveram que optar – ele continuou os estudos (pois era homem, portanto o “chefe da família” – era essa a lógica. Assim, ela o ajudou a formar-se com o dinheiro que ganhava), e ela trabalhava fora, cuidava dos três filhos com a ajuda dos pais dela e lidava com uma realidade feminina nada parecida com contos de fadas. Ela insistia em buscar sempre o melhor. Qual o melhor? Ser feliz. Decisão tomada e cumprida.
Desquite nos anos 1960
Alguns anos, fofocas, mentiras, traições e desquite. Isto se passou no ano de 1960 com um bebê na barriga, uma menina de cinco anos, um menino de seis. E ainda seus pais, pelos quais se responsabilizava e preocupava. O que fez ao descobrir a traição do marido? Para onde iria com três crianças e dois idosos? No caso de mandá-lo embora, a metade das contas ficariam por pagar.
Pensou, ponderou e uma atitude seria tomada após o nascimento da bebê. Um evento precipitou tudo quando começaram a surgir cartas anônimas contando o caso do marido. Sua irmã trazia notícias da traição e ela pedia para não contar, pois faria mal para a bebê em sua barriga. Não adiantou. No trabalho sofreu com uma campanha difamatória contando a estória de forma inversa. “Esta mulher roubou meu marido” – com uma fotocópia de uma foto dela – tinha acabado de chegar ao Brasil esta novidade de fotocópias.
O que fez a ex-Carbonera, hoje uma mulher? Arrancou dos banheiros dos 13 andares da repartição pública onde trabalhavam, todos os cartazes, desceu ao andar e chorou, mas sem parar de pensar. Conversou com sua chefe, e esta a apoiou.
Ela sofreu a pior espécie de preconceito, pois uma mulher “desquitada” era o mesmo que prostituta – os homens com um dos olhos a miravam com desejo (e quase se sentindo com direitos), e com o outro olho a julgavam – “o que essa mulher fez de errado para o marido ir embora de uma vez? Não deve ser grandes coisas!”
Quanto às mulheres, não a queriam por perto, pois era uma ameaça aos seus casamentos – uma mulher sozinha – desquitada, bonita, vestida de vermelho ou verde, cheirosíssima com Fleur de Rocaille. (aqui um parêntese para os Aromaterapeutas entenderem a potência do aroma – notas de fundo: cedro, almíscar, sândalo e musgo de carvalho, notas médias: ylang ylang, violeta, jasmim, rosa e lírio do vale (mugget) e aldeídos como notas de saída)
Seis meses se passaram e nasce a bebê
Tão logo a menina completou seis meses de idade, ela mostrou os cartazes, contou a campanha que sofria, e o marido nada disse, pois na verdade sabia de tudo – ele fez as malas e rumou para Brasília que estava sendo inaugurada. Disse que iria ganhar dinheiro, despediu-se dos filhos levando-os ao teatro. “Papai, quando você volta?” -“não sei. Vou morar lá. É muito longe”. Hoje fica claro que ele estava dizendo que não voltaria.
Assédio no trabalho e uma mulher forte
Assim, sozinha com três filhos pequenos, a ex-Carbonera muito triste foi conversar com sua chefe, dizendo que eventualmente teria que se atrasar e contou toda a situação. Ela não era de chorar, mas não deu para segurar, diante da cumplicidade e acolhimento daquela senhora. Recebeu alguns conselhos: 1. não demonstre fraqueza no trabalho, é isso que estão esperando; 2. esses homens, seus colegas que falam baixinho com você, saem dali dizendo que vão consolá-la e que você topou. A partir dalí, ela passou a responder em voz alta aquilo que perguntavam baixo.
Todos a observavam, mas ela era um enigma – a mulher abandonada pelo marido com três filhos para criar, só andava de “verdes e vermelhos”, suas cores prediletas que comunicam alegria e atitude – outro conselho da chefe, esse, ela adorou, pois já gostava muito dessas cores. Não poderia usar perfumes franceses! Ela argumentou com a chefe que não tinha como comprá-los. Como criaria filhos sozinha e usaria perfumes importados – à época, isso seria quase uma heresia. Seria algo como dizer: “comida ou perfume?”
A chefe tinha a solução pronta: horas extras, muitas horas extras. Ela havia pensado em algo que realmente fosse necessário já em outro setor. Foi trabalhar diretamente com a chefe e o marido desta. Foi uma boa promoção. Com isso, vieram outros conselhos – “estude, pois haverá concurso interno”. À essa altura o medo tomou conta, pois como estudaria, trabalharia, daria atenção aos filhos e aos pais? Que horas ela teria para pensar? Pois era exatamente este o plano da Senhora Marilda – a chefe.
Promoção e novos amigos
A promoção veio, depois de muito trabalho e esforço emocional, e ainda teve que lidar com afastamento físico dos filhos, pois chegava em casa e eles estavam dormindo. Já não precisava vender a prataria da casa e colocar as “joias no prego” como vinha fazendo há muitos meses. Os filhos puderam continuar na escola particular, onde um deles estudava com bolsa de estudos, que foi conseguida com muita habilidade, pedida com dignidade, sem choros ou vitimização.
Conclusão
Somente após ver seus filhos tomarem um rumo, já com amigos e com a presença amorosa e constante de seus pais, ela se permitiu vivenciar um romance. Nisso já havia passado 15 anos. Relacionamento difícil, mas ela dava conta de manter-se no comando da própria vida (à medida em que isso é possível aqui na Terra). Se aposentou após mais um concurso interno, com um salário bastante simpático, digamos.
Quando o namorado após tantos anos – 20 anos de relacionamento – resolveu querer morar na casa dela, não durou um ano a mais. Queria mandar, e até controlar quantas vezes ela falava com os filhos no telefone. Não deu certo! Mandou que ele fosse embora. Ele não foi. Ela fez as malas, mudou-se para Brasília, alugou um apartamento, montou-o lindamente. Foi morar perto do filho e netos pequenos.
Quanto ao namorado, suas duas filhas, que tinham a chave da casa materna, entraram, fizeram a mala dele, levaram para a casa de um dos filhos dele, voltaram e trocaram a fechadura.
Ficou em Brasília mais um tempo, quando seu neto do Rio escreveu dizendo estar com saudades. Ela largou tudo em Brasília, pediu ao filho que ficasse com os móveis de presente, o que não quisesse, desse para alguém, entregou o apartamento e voltou para sua casa no Rio.
Resumo da ópera
Essa mulher nasceu no dia 31 de outubro de 1927, faleceu em 2017 e teve uma vida plena. Aprendi com ela que um sorriso pode lhe levar aonde nenhum carro pode; sofrer é humano, mas agir como vítima sem atitude gera desrespeito, fragiliza e não resolve nada. Aprendi que a fé alimenta a alma, que por sua vez ajuda a alimentar e a curar o corpo, pois tudo é parte de um sistema criado por Deus. A fé não tem limites se houver ação. Ela realiza.
Fé sem ação é igual quando a criança acredita e espera o Papai Noel… é bonito, dá esperanças, mas na hora nada acontece se os pais não tiverem possibilidades de comprar os presentes. Ao Papai Noel as crianças pedem sem limites, pois ele pode, mas dá aquilo que é possível, não o que a criança quer.
E quem é Deus em sua visão? “Deus é Amor, minha filha. Ele criou o mundo, porque sendo Amor, não tem medidas, barreiras, tamanho ou tempo. Ele é expansão e precisava espalhar-se sem limites. Assim, Ele expandiu e fez o Mundo, confiando na Sua obra e deixou por conta do homem a preservação e expansão do Amor – de Si Mesmo. Ele está contido em tudo, absolutamente tudo. Ele supervisiona e gerencia tudo, mas o livre-arbítrio existe. E o perigo tem este nome. As más escolhas nos distanciam de Deus. Atenção e oração. Sempre há tempo de escolher andar pelo lado do Bem, da Verdade, da Justiça e do Amor. Aliás, essa era sua oração desde criança.
“E as pessoas ruins, mãe? “Não. Elas estão ruins – não são ruins, são dignas de pena, mas ainda assim mantenha distância, pois o mal não se encara, ele é infeccioso e nos torna piores. Ore por eles, mas com as portas abertas – tudo é energia. Com essas pessoas nunca reaja de pronto. Pare, pense, ore e aja. Nunca aja com o instinto nesses casos, pois este não será o melhor de você.”
E a Carbonera tornou-se uma vencedora na Vida, criou três filhos sozinha, formou os três em universidades – o que para ela era fundamental. Dizia que a herança que deixaria para os filhos seria a educação e a religião (como religião, leia-se a fé para comunicarmo-nos com Deus, precisando ou não – sempre precisamos). Nos ensinou a não termos uma relação utilitária com Deus, como essas pessoas que só lembram Dele no sufoco. Uma relação constante nos faz sentí-Lo. Estudar Deus sem sentir chega a ser arrogante, dizia.
Dia das bruxas? Dia das fadas? Nem bruxa, nem fada. Uma mulher e isto expressa melhor. Minha mãe isto basta. Sem “poderes” mas com muita força, fé e vontade de viver e realizar. Sua maior mágica: Auto superação pela Fé. Seu poder: o verbo fácil cheio de sabedoria. Minha mãe nasceu no dia das bruxas, isto faz sentido quando vamos buscar na etimologia o significado da palavra, que vem a ser: “mulher sábia”.
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