Dia de Natal, corre-corre, compras, comidas, presentes, lembranças de infância, memórias de amigos do passado, reflexões, etc.
Dia de Natal, família e amigos. Dia de ficar em casa. Não gosto de rua nesses dias, a pressa das pessoas e o sentido de urgência no ar, há muito me incomodam.
Mas como é época de reflexão, que ocorre naturalmente nessas datas, algumas pessoas ficam mais sensíveis, ou melhor, se permitem dar de cara com suas profundezas, e de repente a sensibilidade escorrega da boca, e escorre pelos olhos.
Recebi telefonemas de amigos, parentes, gente que amo, outras que gosto e confesso, que até nem lembrava muito, devido ao tal do cotidiano, que não nos permite lembrar de quem não está na ordem do dia. Talvez isso seja triste, talvez normal, quem sabe comum? Mas é assim que acontece.
Entretanto, dentre tantos telefonemas que me fizeram feliz, um deles me deixou com a sensibilidade à toda. Era o meu ex- porteiro. Um nordestino que chegou ao Rio de Janeiro há mais de vinte anos, sem eira nem beira, sem maiores perspectivas, mas com uma certeza. Teria que dar certo, já que não tinha outro jeito – errado já tinha dado em sua Terra natal, portanto, procurou emprego e quando o encontrou foi firme em suas intenções e usou de clareza com quem lhe deu a oportunidade. Estava ali para trabalhar e não tinha preconceitos e exercitaria a humildade, faria dar certo, isso era garantia. E cumpriu.
Estudou, fez escola técnica de edificações, e tornou-se um “faz tudo” da melhor qualidade. Não dá muita conversa para as pessoas, as trata com educação, mas cada um na sua. Não admite ordens e sabe o que quer, tem o dom da autoconfiança. Estava ali para dar certo, sem outras possibilidades. Sabe o que quer e sabe se impor.
Como também tenho um lado assim, algumas vezes batemos de frente, e lembro de uma vez tê-lo perguntado se era o dono do prédio. Agia como tal, claro que hoje entendo, para fazer bem feito muitas vezes as pessoas precisam ser firmes, é humano, principalmente para quem precisa colocar ordem na casa, onde todos os moradores agem como se fossem os únicos donos do prédio. Assim, ele tomou a função para si. E deu certo.
Tem poucos amigos, família distante e por não admitir interferências em sua vida pessoal, tampouco intimidades, é solitário de verdade, mas não é triste, pelo contrário. Além disso, virou “rato de academia”, tem dieta super saudável e uma poupança para casos eventuais. Ele é sua segurança, não conta com ninguém no mundo, segundo relata.
Ontem era Natal e iria passar a noite sozinho, como de costume em quase todos os anos. Mas nem sempre foi assim, teve um relacionamento no qual permitiu-se mostrar o lado sensível e as pessoas abusaram do privilégio de contar com ele. Desistiu, mas não se entregou, apenas fortaleceu.
Ontem quando batia as 22 horas, recebo um telefonema dele, com voz firme, entusiasmada um pouco além do comum, dizendo que tinha admiração pela minha família, que era a única que o via com olhos humanos, que esperava que contássemos sempre com os serviços e a amizade dele, pois sabíamos que ele era humano e não o víamos como porteiro, lidávamos com o fulano de tal. Falou da importância que isso tinha.
Apesar da admiração pelo inesperado telefonema, pela confissão, já que de uma pessoa emocionalmente trancada não se espera esse tipo de manifestação, fiquei feliz e demorei mais de trinta minutos conversando com ele, que fez digressões profundas sobre o Natal.
Fiquei muito sensibilizada porque para uma pessoa que passa a vida toda dizendo que não se importa, demonstrava não só que se importava comigo e com minha família, mas com toda a Humanidade, que segundo ele, não conhece, pouco entende mas observa e sente tudo.
Falou sobre a tristeza que sente nessas datas porque se lembra das pessoas na rua, e sabe que não é por ser Natal que coisas penosas deixam de acontecer. E quando acontecem, o peso torna-se maior justamente devido ao contraponto que faz com a alegria geral.
Falou da urgência de se falar o que se sente, questionando a razão de as pessoas armazenarem sentimentos e desejos para só expressá-los nestas datas…. Pois é…
Falou da tristeza que sentiu ao ver um apartamento pegar fogo na frente dele justamente naquele dia, falou do sentimento de impotência diante do inexorável, imaginou a dor alheia e entristeceu-se.
Contou-me que havia preparado uma bacalhoada com uma bela salada e comprou um vinho estrangeiro, que iria desfrutar sozinho, mas que isso seria apenas aparentemente, pois todas as pessoas solitárias e tristes seriam homenageadas através de suas orações.
Conectei-me imediatamente com a “inquilina” que mora dentro de mim que pensa e sente igual. Ela sempre nessas datas faz a mesma coisa. Sabe que a solidão de quem não está com a família ou com amigos, nessas datas é bem maior, as dores são potencializadas.
Senti uma enorme empatia naquele momento, porque não esperava ouvir do porteiro temido pelos guardadores de carros, moleques de rua e pelos próprios moradores do prédio, por sua postura séria, pela força de seus músculos trabalhados todos os dias na academia, da qual não abre mão, falando de sentimentos, empatia e solidariedade como um filósofo.
Totalmente conectado com as dores do mundo, com um sentimento e questionamento sobre o tempo de uns e de outros, que seja em que data do ano for, quando as coisas precisam acontecer, acontecem e seja Natal ou não, as pessoas sofrem e têm que dar conta, pois outro jeito não têm.
Pediu enfim, que eu quando fizesse minhas orações não esquecesse dessas pessoas, pois sabia, de alguma forma que eu o faria. Tinha consciência da importância dessa conexão.
Acertou em cheio e eu, descobri porque no Natal entro em estado de contemplação, deixando o entusiasmo para depois. Justamente por pensar que existem acidentes acontecendo apesar do Natal, pessoas ficando doentes apesar do Natal, e sofrimentos que não esperam. De alguma forma ele me respondeu porque eu fico feliz por ser Natal, estar com saúde, em família, mas ao mesmo tempo paira uma introversão que não me é característica.
Enfim, à essas pessoas a minha solidariedade, compaixão e orações. E apesar de tudo, fico com a convicção de que tudo passa e “Amanhã” (seja no dia seguinte, ou no próximo mês) trará a solução, o alívio e a renovação da Fé. Afinal, o significado do Natal é esse, Fé, compaixão e cura da Humanidade.
E que venha a Cura!
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