Em tempos em que precisamos conviver melhor com os nossos parentes, vizinhos, amigos e, mais e principalmente, conosco mesmos, uma ajuda é sempre muito bem-vinda, e benção da Vida. E assim me surge a Escritora e Roteirista Paula Gicovate com sua Oficina Escrevendo o Amor, propondo exercícios maravilhosos, supervisionados e comentados por ela, pessoalmente. Embarquei de cabeça, fazendo exatamente como a proposta – teimosa, não gosto de seguir nem sugestão de bons restaurantes, lá fui eu, direitinho, tranquila, e garanto que quando ela fala em Litera-Cura não é uma sacada de gênio, é literal, tem me feito tão bem, que estou de volta – as sementes de minhas palavras escritas estavam hibernando – agora estou compartilhando abaixo o meu primeiro exercício. Ela me mandou uma foto e propôs que eu descrevesse de determinada forma. Incrível! Recomendo fortemente. Aqui brindo vocês com o contacto dela:
Vale muito!
“O quarto das meninas
“O sol se preparava para acordar aqui pela Terra quando a Sra. Menina, sim era esse o nome dela, entrou no quarto sombrio das filhas, como fazia todos os dias. Ela tinha uma espécie de vício em olhar suas filhas dormindo e imaginá-las felizes princesas, protegidas do mundo lá fora. Ainda alí, parada, de pé na porta do quarto, perguntava- se onde era lá fora, já que a vastidão do mundo era fato, e sabia que paredes, portas e cadeados não as isolariam e protegeriam de muita coisa… Foi exatamente neste instante, e só neste instante, que se deu conta de que as meninas não estavam no quarto. Apavorou-se, já que passava um pouco de 5 horas da manhã. Sentiu um frio na barriga e jogou-se na cadeira onde as filhas no final do dia jogavam as roupas usadas. Nesta mesma cadeira tinha roupas limpas que experimentavam e desistiam de usar, implicando com as mesmas. Isto acontecia com frequência, pois a cada dia um humor diferente, e para cada humor, uma roupa adequada a ele. Ficou pensando em roupas, princesas, crimes, café da manhã, trabalho, namorados das filhas, tudo ao mesmo tempo com medo de ficar com medo, pois sabia que o próximo pensamento seria: “onde estarão minhas filhas, se quando fui dormir estavam aqui dormindo?… Um sequestro… uma fuga… Meu Deus, Valei-me…!”
Para sua sorte foi salva pela voz de Cristina. “Mãe, o que vc está fazendo aí?” Dona Menina respondeu: “e você, o que não está fazendo aqui? Onde está sua irmã?
-“Ah mãe, esta é uma estória comprida que contaremos mais tarde. Ela está tomando banho, não ouve o barulho do chuveiro? A mãe fingiu que ouvia, pois na verdade estava confusa, estaria mesmo ouvindo? Fez que conformou- se, mas fotografou com os olhos o quarto delas em detalhes, gravou em sua memória o tom de voz de Cristina – precisava investigar se estava tudo normal como ela gostaria que estivesse. Estranho… nenhuma pista do que teria acontecido… Voltou para o quarto e montou na mente um quadro do que tinha visto. Cansou-se e achou tudo bobagem, fruto de sua fértil imaginação. Dormiu. Quando acordou pensou haver sonhado e precisou verificar. As filhas dormiam serenas, mas havia algo diferente. Cristina estava na cama de Cristiane, e esta na cama da irmã. Cristiane tem temperamento alegre, extrovertido, gosta de experimentar a vida com tudo o que esta pode apresentar. Tem pressa em viver, dorme tarde, e faz questão de acordar com um pedaço de sol no rosto assim que este se apresenta. A cada dia tem uma agenda diferente e detesta rotinas, apesar de estudar para ser professora de latim. Esta é uma atividade que toma muito de seu tempo físico e de seu tempo emocional, pois desenvolveu um hábito quase neurótico de buscar o significado de cada palavra que ouvisse -bastava não ser daquelas muito comuns.
Já Cristina é romântica, calma, faz yoga três vezes por semana, é vegana, medita em horários pré- determinados, nunca se atrasa e trabalha como fisioterapeuta geriátrica. Dona Menina gostava de fingir ser uma mãe do jeito que ela gostaria de ser, mas estava longe disso. Fingia ser discreta, pois sabia que individualidade é sagrada, mas ela não tinha culpa de se preocupar com suas filhas, então tentava justificar seu lado espião emocional “discreto”, segundo achava.
Perguntou como quem não quer nada: “por que você está dormindo na cama de sua irmã?”, dirigindo-se à Cristina que acabara de acordar. Esta disse que a resposta era complexa, portanto na hora certa ela perceberia, sem necessidade de maiores explicações. Deu um pulo da cama, um beijo na mãe e correu para o chuveiro. Mesa posta, frutas, cheiro de café fresquinho, bolo sem glúten, bolo de fubá recém saído do forno. Além disso, vários tipos de geléia de tons e sabores vivos. Pão francês, frutos diversos, sucos e um bule de porcelana inglesa com um desenho de uma ave alçando vôo sobre a cabeça de uma donzela. Neste bule, um grosso chocolate quente. Cristina sentou-se à mesa, serviu-se de chocolate, de uma exagerada fatia de bolo de fubá no qual passou uma camada de geléia de goiaba de cor rubi. E saboreou como se tivesse acabado de chegar em um planeta desconhecido e estivesse tendo experiências inimagináveis. Cada gole, cada mordida no bolo eram apreciadas de tal forma que fica até dificil descrever. Terminada a experiência, Cristina pegou um pão francês, daqueles que ela nem recordava o sabor, pois não experimentava um desses desde menina, e colocou manteiga, salaminho, e duas espécies de queijo diferentes. Comia com os olhos fechados. A mãe, tentando se fazer de discreta, acreditando conseguir, fazia caras e bocas, se emocionava, balançava a cabeça confusa, mas nada perguntou. Cristina era vegetariana desde criança, não comia glúten por opção e convicção. Chocolate quente seria impensável, pois o uso de leite para ela era algo proibido, por ela mesma, mas ainda assim, proibido. Cristina fingiu não ver a mãe e suas caras de espanto e saiu.
Dona Menina todas as vezes que se vê em apuros ou confusa, recolhe -se em seu quarto e faz uma conferência com todos os seus santos de devoção, onde anjos e Nossa Senhora nunca faltam. Perguntou para cada um se havia algo estranho com suas filhas. Estava preocupada, mas não queria invadir o mundo delas – tinha uma boa noção teórica de fronteiras e as respeitava. Nossa Senhora respondeu amorosamente que com filhos as teorias de nada valem, pois amor é algo ilimitado, portanto sem fronteiras. Explicou que não existe amor errado, o que existe é desrespeito ao amor e à individualidade do outro. Cada um se colocando no próprio lugar dá tudo certo. E disto ela teria provas em breve. Tomou um longo banho de banheira, ouvindo Chet Baker, isto a levava para um mundo especial.
Arrumou- se, colocou seu perfume de flor de laranjeira temperado com pimenta negra, feito exclusivamente para ela, e quando chegou na sala, encontrou Cristiane em posição de yoga. Nada falou, mas prestou atenção. Viu a menina levantar-se sentar-se à mesa e comer bolo sem gluten, chá, geléia sem açucar… As filhas estavam fazendo tudo ao contrário, ou estaria ela louca? – pensava. Resolveu adiar a preocupação, até porque acreditava em Nossa Senhora, que para cada problema de sua vida, se apresentava de uma forma. E desta vez, tinha se apresentado como Oxum.
E, ela não conta pra ninguém, mas quando é Oxum quem comparece às reuniões, ela fica mais contente. Não sabe porquê, mas gosta da sensação de confiança que sente. Saiu para um almoço na casa de uns amigos na Serra de Petrópolis, onde divertiu-se bastante, tocou piano, cantou, tomou bom vinho, riu como criança e voltou para casa. Estava tão leve que cuidou de si e nem foi ao quarto das filhas aquela noite. Entretanto, no dia seguinte pela manhã, chegou ao quarto e este estava vazio. As meninas já tinham saído. Ela ficou ali parada, revendo a vida delas três, agradecendo a Deus pelas filhas, mas havia algo que a incomodava e ela não sabia o que era. Ficou tanto tempo ali que cochilou na cadeira. Sonhou e viu Cristina como Cristiane e Cristiane com o comportamento de Cristina. No sonho sua avó Maria da Alegria aparecia e explicava o que estava acontecendo. “Suas filhas estão antecipando um processo pelo qual todo mundo precisará passar a fim de integrar as partes de si mesmas, as quais sentem um vazio inexplicável.
Resolveram se colocar uma no lugar da outra para melhor entenderem a si mesmas, pois os motivos pelos quais brigam, agora podem ser vistos pelo ponto de vista da irmã – não precisa aceitar, mas respeitar e lidar com aquilo como algo do outro e não seu. Todas as qualidades admiradas na irmã podem ser vistas pelo lado de dentro e reconhecer a luz e a sombra da outra em si mesmas, e ao entender, integrar as bênçãos e desafios e libertarem-se pela aceitação para serem quem querem e precisam ser.
Acordou com as duas olhando amorosamente para ela. Disseram: “mãe, você precisa de algo? Quer nos entender melhor?” E esta apenas olhou para as filhas e disse: “o amor não precisa de fronteiras, precisa de respeito, porque é o respeito ao próprio amor. O amor não precisa de compreensão, mas de aceitação do outro como este se apresenta. O amor precisa de cultivo. Amo vocês como são e como virão a ser. Peço perdão pelas minhas expectativas sobre vocês- eram minhas próprias, já as recolhi e estou cuidando delas. À vocês, dedico não só meu afeto, mas profunda admiração. Sei o que estão fazendo. Cristiane respondeu: “Mãe, tudo o que precisamos fazer foi trocar de camas e dormir sobre o travesseiro uma da outra. Assim, conhecemos os sonhos, as fantasias e necessidades uma da outra. Nos integramos e sentimos realmente prontas para a vida e para esse amor do qual você falou. Trocar de cama e travesseiros requer muito amor e confiança, sonhar junto…, mas no cotidiano das pessoas, basta olhar para a estrada que caminham e ouvir com atenção as palavras que não disseram. Calçar os sapatos do outro, como diz o ditado, pode ser perigoso. Tropeçar é quase certo. Os sapatos vêem impregnados de histórias de vida, de caminhos percorridos, que podem nos assustar e até desviar do nosso próprio caminho. Como você disse, respeito ao outro é sempre o primeiro passo.
Agora, rearrumaremos nosso quarto, com camas, colchas, lençóis e cores todas novas e com novos travesseiros para novos sonhos, principalmente aqueles que nos levarão ao encontro de nós mesmas. Mandaremos quebrar a parede para aumentar as janelas, assim veremos melhor o horizonte, o Sol entrará por inteiro. Não precisamos mais de cortinas. Nada a encobrir.
Dona Menina estava iluminada de si mesma, e desta vez saiu dali se sentindo mais forte e feliz, pois viu que suas filhas eram capazes de lhe ensinar, não eram mais crianças, portanto ela não precisava ter medo por si e por elas, por haver errado ou acertado demais. Ela acabara de descobrir que, ao contrário do que havia aprendido, criar filhos é apenas ser o melhor que se consiga ser, lembrar que são seres independentes de si e que a melhor educação que se pode dar, é ser feliz, amar a si mesma e amar seus filhos da forma que eles são. Tudo que se veja que possa melhorar neles, pode e deve ser dito, com e por amor. As filhas já sabiam disso e eram gratas à mãe.
Esta, feliz pelo aprendizado, pediu nova reunião com seus santos e anjos. Pediu a presença de todas as mães, as Nossas Senhoras com todos os seus nomes e formas de se apresentar. Agradeceu e pediu uma bênção. Queria mudar de nome. Não mais Dona Menina, preferia apenas ser chamada de Senhora Mulher, ou em sua forma mais afetuosa: Mulher. Iria usar o sobrenome que herdara de sua avó, passando a ser conhecida como Mulher Alegria. Suas janelas também alargaram-se, não precisava mais de cortinas, apenas pensava em um par de sapatos novos, mais confortáveis e adequados para caminhar pela Vida com passos mais firmes e confortáveis. Descobriu que aquele quarto que as filhas ocupavam até então era um retrato de seu próprio medo. Estava muito grata às filhas, pois elas mesmas perceberam, cuidaram e curaram a família inteira. Eram três adultos, três Mulheres.”
Óleo essencial: Petitgrain
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