Era cego quando nasceu e assim permaneceu em sua escuridão, na qual o breu foi muitas vezes seu abrigo mais seguro. No escuro, aprendeu a isolar-se em meditação e silêncio, aprendeu a aguçar a audição, o olfato e a sensibilidade energética, o que lhe trouxe uma excelente intuição. Assim foi batizado como o Cego que Tudo Vê.
Em sua intuição, sabia que viveria só em sua monotonia escura até seus 35 anos, quando seu último sentido seria despertado – o amor. E de ano em ano, aprendeu a sobreviver, a atender aos necessitados, dando conselhos em suas caminhadas, a tirar de seu destino as energias que o tentavam vampirizar.
Aos sete anos perdeu seu pai, acamado já há algum tempo, tendo definhado até o último suspiro, e deixado o legado do que é a dor para o Cego que Tudo Vê.
Aos quatorze anos perdeu sua mãe, atropelada por uma manada de búfalos, que mesmo pisoteada, ainda sustentava fortemente com os braços erguidos, os pães que carregava para seu filho. Essa, deixou de herança da persistência. Mesmo quando somos derrubados, devemos levantar pelo que nos alimenta a alma.
Aos 21 anos, chegou a vez de sua irmã o deixar, abatida pelos obstáculos e pela dureza da vida, se viu obrigada a abandonar seu amado irmão Cego que Tudo Vê e caminhar até o mais próximo horizonte, para em um casamento arranjado, sobreviver da fome. Trocou meio pão por um pão inteiro, com violência, destrato e abusos. E deixou o aprendizado, que sempre buscamos ao longe o que ainda não damos valor por perto.
Aos 28 anos, perdeu para um aproveitador o seu único bem, seu casebre onde todo espaço era dominado pela contagem dos passos, pelo cheiro do fogo e a brisa que indicava as correntes de ar e a localização do sol. Com isso, aprendeu o Cego que Tudo Vê, que tudo que é material é temporário e que não podemos dominar o tempo. Sempre haverá o desconhecido.
E assim caminhou, durante 07 anos, quando, sabia, conheceria de forma mais profunda sua escuridão e contaria menos com sua intuição, que calaria, a fim de que ele realmente escutasse seu escuro e vazio. Na certeza de caminhar até chegar finalmente no que ele receberia como última dádiva – o amor – andou lidando com suas dores, inclusive físicas, acreditando em um bem maior, valorizando cada fruta que caía aos seus pés, cada pedra pisada, e sabendo que tudo na vida é temporário e o Tempo um Deus maior.
Caminhou desprovido de tudo, e na bagagem sua própria vida, até chegar em um vilarejo com aroma de fogo e calor de ferros fundidos. Era o dia de seu 35° aniversário, e logo ao entrar nesse local de tantos aromas em enxofre, foi recebido pelo chefe do local, um homem forte, belo, e educado a defender seu espaço “belicamente”.
Ao ver o Cego, mesmo desconfiado, levou até sua casa, onde a mais bela das mulheres estava preparando um jantar aromático com as mais exóticas especiarias. Ainda que embriagado de tantos aromas, o que mais o despertou foi o aroma da saliva dessa mulher, que imediatamente transformou o Cego que Tudo Vê, agora naquele que Tudo Sente. Ele no mesmo instante conheceu o que é o amor.
E assim acabaria nossa história, mas nosso desejo é que ele tenha ficado para o resto de sua vida com seu amor verdadeiro.
Mas o fim da história e o resumo de nosso período é o que realmente aconteceu.
O Cego que Tudo Vê imediatamente se dirigiu à essa mulher e a beijou na boca, misturando suas salivas, sensações e energias. Podendo em um breve período enxergar a beleza da mulher, a beleza da vida. E misturado com o beijo, veio o sabor de sangue, da lança que o atravessava pela ousadia de tal ato. Morreu, mas não antes de conhecer o amor.
E nesse período devemos perceber o que essa história vem nos contar. Não confunda destino com escolhas. Arrisque quando for pelo tudo. Aprenda a viver com as dores da vida, as despedidas, com o que se tem, mas sempre acreditando que temos uma direção a seguir. Às vezes, a intuição falha, para que possamos escolher e nos conhecer melhor. Mas não significa que nossa proteção tenha falhado.
Mesmo quando a resposta for não, ou o fim a morte, o que vale é para o que chegamos e não onde chegamos. Melhor viver um segundo de amor do que a eternidade do inimigo. E ainda que enxerguemos tudo, seremos eternamente cegos.
Então, siga!
Óleo essencial: sandalo
Foto casal: Wang Zi (Unsplash)
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.