Assim, foi criando um buraquinho em seu peito, que ia se alargando, até que ele acabou achando que era assim mesmo, de tanto que convivia com aquilo.
Acontece que a cada “João Pastel” ouvido, cada dor sentida, ele parecia se encolher. Então, num movimento de autoproteção, construiu um bauzinho ali mesmo dentro do peito, que a princípio, ele achava, poderia conter o crescimento daquele buraquinho que doía muito.
Foi ficando cada vez mais circunspecto e falando mais difícil ainda. Era como se o bauzinho pudesse proteger o buraquinho que tanto doía.
Como não tinha amigos, preenchia o buraco no peito com estórias lidas nos livros. Estudou tanto que entrou cedo para a universidade, onde finalmente, acreditava, iria se livrar do “João Pastel”.
Chegou no campus com seu jeito envergonhado por dentro e arrogante por fora. Se vestia diferente de todos – seus colegas usavam jeans, tênis e camisetas coloridas – uma espécie de uniforme de toda a juventude à época. Desta forma, não se notava muito as diferenças sociais, pois ricos e pobres usavam o mesmo tipo de roupas. Sim, até as marcas disponíveis de tênis e jeans eram poucas e era bastante democrático o comportamento.
Eles tinham interesses em comum, que era estudar aquilo que tinham escolhido (ou seus pais), mas a missão de todos era uma só – cursar a universidade e fazer carreira. Mas enquanto estudavam, namoravam e se divertiam. Uhm… todos, menos João Pastel, que àquela altura já era conhecido como João o Velho.
Ele, por sua vez, passou a falar mais difícil, incorporou um sotaque puxado nos “esses e erres”, que todos estranhavam, até a própria família. Ele sentia que algo andava errado, pois um dia sentia tristeza, no outro o joelho doía, pegava resfriado com frequência e até mesmo volta e meia precisava faltar as aulas por ter dores de barriga bem fortes, que não o permitiam afastar-se de casa. Isto tudo, sem contar com dores de cabeça frequentes.
Procurou um médico que descobriu seu bauzinho dentro do peito e constatou que havia um furinho quase que imperceptível no fundo, por onde vazavam suas dores, que até então julgava escondidas. Elas, coitadas, tanto tempo trancadas, quando conseguiam fugir, ficavam piradas e iam parar em qualquer lugar – cabeça – onde doía, barriga – onde apertava, joelho – onde enrijecia, e após o vazamento, cristalizava, criando um desequilíbrio físico.
O médico era fera – foi direto ao ponto só de conversar e observar sua postura encurvada, como um velho!
Nossa… como o médico diria isso? Ele contou a estória toda. Foi incentivado a fazer esportes e continuar estudando. Tudo passaria sem remédios, precisaria apenas mudar hábitos e se abrir mais para as pessoas.
Ficou animado, e chegando em casa, pediu à mãe que comprasse uma bola para ele – iria jogar futebol com os
meninos de sua rua, pois estava de férias.
Desceu para a rua com sua linda bola e aconteceu como previsto – logo foi chamado para os jogos, mas precisava levar sua bola, pois era do tipo profissional. Que alegria…! Um dia, dois dias e.. foi expulso do jogo, pois não sabia jogar nada e só atrapalhava, segundo os colegas. Naquele momento ele chegou a sentir o tal vazamento detectado pelo médico.
Foi do lado direito do abdômen, sentiu um calor no local, um aperto na garganta, o rosto avermelhou-se. Pegou a bola e saiu de campo sob vaias e xingamentos dos colegas.
A partir deste dia tornou-se mais seco do que era, mais rígido e raivoso. Naquele episódio conseguiu reagir pegando a bola e literalmente fugiu do campo, sem dizer uma só palavra – a boca estava seca e com um gosto amargo que até hoje não se livrou. Achou que mudaria de nome, para “João o Dono da Bola”…Que decepção!
Ainda de férias em casa, a família estranhava seu comportamento. Jogava bola contra as paredes, jogava tênis contra uma adversária dura de roer.. é, ela mesma – a parede.
Um dia sua mãe chamou sua atenção para que parasse com aquele barulho, pois era extremamente incômodo à ela e seus avós idosos. A mãe assustou-se com sua reação. O rapaz começou a gritar que ela não tinha o direito de reclamar. Ela até tentou entender, mas foi impossível, pois ele gritava, socava a parede, batia no próprio peito e soltava socos no ar em direção à mãe. susto, medo e muita preocupação foram os sentimentos da mãe naquele momento. Ele repetia que ela vivia “na rua”. Trabalhando na maior parte do tempo, sabemos todos, e ele mesmo sabia. Por isso a preocupação era maior.
Não podia admitir um filho desrespeitá-la, já que criava 4 crianças sozinha com seu trabalho de professora, cuidava dos pais, que a ajudavam na educação dos netos, e ainda administrava tudo. Não teria ela o direito de ter amigos e por que não sentir-se amada, divertir-se um pouco? Com voz firme ele ordenou que parasse imediatamente com aquilo. Sua reação foi inesperada – levantou a mão como se fosse bater na própria mãe, acredite! Nesse momento, já estavam na sala seus avós, e seus irmãos, que eram muito respeitados por ele (talvez a palavra correta seja: temidos – eram durões e ninguém falaria grosso com a mãe deles. Parou tudo ali e nunca mais as coisas foram as mesmas.
Voltou à universidade, desta vez como João Só, para os colegas ainda era Pastel, mas ele sabia que havia mudado.
Formou-se, mudou de cidade, foi trabalhar como engenheiro em outro estado, onde conheceu uma moça e quis logo casar-se, mesmo que não a conhecesse o suficiente. Ele era João Só, mas havia conseguido umas amigas de bastante idade, algumas até mais velhas que a própria mãe, que o levaram para uma igreja bastante radical. Se ele já não se divertia como seus irmãos que tinham a idade que tinham e agiam de acordo, indo às festas, curtindo romance, sexo, álcool e rock & roll, “pero sin perder la ternura”. O que seu “lado A” invejava, e seu “lado B” condenava.
Vivia assim, cindido. Não se relacionava intimamente com ninguém e casou com a moça. Deu certo? Claro, pois atraiu alguém que também não gostava (não conseguia ) doar-se em afeto. Duas almas feridas, na verdade…
Foram juntos ao médico, aquele fera – e ele advertiu: cuidado para não tornarem-se sovinas, mesquinhos no afeto, pois isto pode fazer o baú vazar de uma vez e este sabor amargo em sua boca materializar-se em desequilíbrio físico severo! Cuidado com as finanças, podem degringolar! Vão secar como plantas não regadas. Exatamente como suas emoções.
Eles tentaram, mas acabou acontecendo tudo conforme o previsto pelo médico. Não conseguiram doar-se, separaram-se, ele ficou com problemas de altas taxas de glicose no sangue numa desesperada tentativa de compensar a falta de afeto dado e recebido. Além disso, criou gordura no fígado e outras mazelas. Ela envelheceu precocemente e tornou-se mal humorada, também com problemas sérios no fígado.
Ele então amargou extrema solidão, competia com os colegas de trabalho, sentia-se credor da vida, os filhos queriam afeto, mas o cobravam em dinheiro. Para ele acabou sendo “mais fácil” pagar em espécie, apesar de sofrer com isso. Tentou namorar uma, duas, três…mas ele era exigente, e elas queriam afeto verdadeiro, enquanto outras, bem… facilidades financeiras verdadeiras.
Acontece que a Vida dá aquilo que precisamos, principalmente quando programamos. Um dia ele concluiu que queria alguém que cuidasse dele na velhice. Conseguiu. Ficou doente e precisou ser cuidado mesmo. Casou-se com alguém disposta a isto, jovem e cuidadora de idosos- ah.. se ele soubesse que os ouvidos da Natureza são tão afiados.. !
Hoje vivem bem, mas o dinheiro secou, o afeto não pode fluir, pois as questões financeiras os afastavam, apesar do afeto que os uniam. Bem, não sei dizer qual afeto, seu nome poderia ser medo de solidão ou gratidão de parte a parte. Só o tempo esclarece determinadas coisas – há um tempo de maturação para tudo.
Ele veio fazer um mapa alquímico comigo e em seguida o encaminhei para a Constelação Familiar. Hoje João não é mais Pastel, não é mais Velho ou Só. Tornou-se João o Arquiteto de si mesmo, e a madeira que o ajudou a estruturar- se foi o sândalo mysore – a árvore que apesar das curtas raízes, pega carona nas raízes de outras árvores do entorno e se doa com suas propriedades, estabelecendo lindas parcerias. Faz-se uma perfeita Alquimia
Hoje, a inteligência de João é para dentro de si mesmo no sentido de autoconhecimento, de doação e cura. Pode enxergar profunda e intuitivamente.
Descobriu que amar não dói, que receber amor é seguro e a partir de seu processo de cura ressignificou sua relação com os filhos, com os irmãos e perdoou seus pais e a si mesmo, reconhecendo que as falhas deles, pais, o ajudaram a crescer, que suas qualidades, uma vez reconhecidas, puderam ser integradas a si mesmo.
Ele costuma contar sua história como se contasse milagres mágicos, principalmente a parte em que recuperou seu poder aquisitivo. Talvez ainda não tenha se dado conta de que somente a partir do momento em que percebeu que Analuz, sua mulher, estava casada com ele pelo que via em sua alma e não pelo que lia em seu extrato bancário isto foi possível. Já sabe que houve uma liberação no fluxo vital que permitiu circular inclusive as finanças familiares. Algo como se dissesse: “Ufa…, agora já sei que ela me ama e não só quer meu dinheiro. Assim, posso tê-lo de volta. Passou no teste.”
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